17) Mistério
A pretensa crueldade atravessou Patrícia, mas ela a esmagou entre os dedos do pé. Como uma bailarina, repensou a atitude e pegou a crueldade novamente na mão esquerda: as patas coreografando uma dança esquisita. Patrícia nem ousou contar nada para a mãe. Nem a ninguém. Talvez nem fosse cruel.
Horas depois da descoberta, Patrícia foi até a despensa, pegou uma caixinha de fósforos, jogou todos os palitos no lixo, e tentou esconder o feito com uns papéis amassados por cima. Esse feito era o plantio de um mistério; ele, o outro mistério.
Levou tanto a caixinha quanto ele para o quintal e os escondeu sobre o martelo e as chaves de fenda alaranjadas.
Uma jabuticaba refletia o andar de Patrícia até a casa. Entrou para o quarto, passou a chave na porta; sobre o travesseiro a cabeça dava sinais do desconhecido, martelando a imagem dele: forte e supostamente voador.
Duas horas depois, Patrícia abriu a porta com tanta avidez que quase a atravessou como um fantasma. Estava de volta ao quintal. Caixinha aberta na palma da mão. O que é?
Continuava pasma. Dessa vez ele batia as asas — feitas de papel? Não era mais palhaço, talvez tivesse ensaiado aquela apresentação por anos.
Amigas vieram visitar Patrícia, mas sobre aquilo ela nem um pio emitiu. O tio, a quem confiava as histórias mais absurdas, nem de longe imaginaria sobre a caixinha. Matias, então, quando fossem realmente próximos, quem sabe. O segredo se tornou dias, e os dias se tornaram ainda mais secretos.
Patrícia nunca beijou Matias – que fora estudar em Lisboa e passou a namorar uma tal de Leonor –; também guardou muitas cartas sem as enviar; pegou muitas vezes o 4403 somente para ler livros de ficção científica enquanto ia ao centro e retornava ao bairro; formou-se em Artes Visuais, com uma bolsa de pesquisa na qual se dedicou a estudar os diários de Paul Klee; sentou-se em pontos de ônibus sem que dividisse palavras com desconhecidas das quais se apaixonou; esperou mais de três horas para ser atendida, e mais de duas para que coletassem o seu sangue em um pronto-atendimento público; brigou com uma amiga próxima durante uma partida extensa de Catan; chorou com propagandas de banco e poemas ruins distribuídos por escritores na Praça da Liberdade; imaginou se casando com Dora e tendo três filhos e uma cadela de nome Paçoca; casou-se com Emília e tiveram três gatos com nomes de humanos: Pâmela, Amanda e Ptolomeu; teve uma crise de ansiedade induzida por THC; compôs três músicas e com elas um EP de que só o Luan, amigo mais próximo, disse ter gostado; mastigou pedras de gelo sem ter medo de que aquilo lhe fizesse mal; apresentou sua pesquisa de mestrado sobre diários artísticos para uma plateia dispersa; dançou forró durante a maioria dos sábados do ano em que sua vó morrera; separou-se de Emília, mas ficou com as plantas; teve um súbito prazer ao assistir a um jogo de futebol do Atlético Mineiro em um bar da avenida Amazonas; passou meses deprimida depois de entregar a dissertação; e, quando decidiu mais uma vez por aquilo, Patrícia já havia se tornado outras pessoas.
Os cabelos pretos ainda combinavam com os anéis, é verdade, e tanto os cabelos como os anéis também atravessaram o velho quintal naquela tarde.
Patrícia de pernas cruzadas sentou-se no chão com a caixinha entreaberta sobre o colo. Esse ficar ali se transformou em mais de trinta anos — e ele continuou, ao contrário de Patrícia, o mesmo. Alguns fios brancos do cabelo dela voavam e pousavam no chão preto de jabuticabas, fazendo riscos claros como os rascunhos de Paul Klee. Ela não olhava mais para ele, porque Patrícia se tornara o chão.
Um abraço
Diogo.
*esta carta e o zine Mistério N°1 têm o apoio em moedinhas de Renato Rios, Fabyane Maciel, Marcelo Novaes, Adrieli Sandra, Letícia Bergantini e Simonete Torres.