Só trinta e três por cento é mentira
Parte um
Os irmãos Auguste e Louis Lumière nasceram em Besançon, na França, e foram responsáveis pela criação do cinematógrafo Lumière: aparelho para registro e exibição de imagens. Com essa máquina, eles registraram três versões da famosa saída dos operários de uma fábrica, considerado o primeiro filme da História: o A saída da fábrica Lumière em Lyon. O pioneirismo criou outras faces, não apenas o primeiro filme do mundo. Criou personagens, público, cadeia produtiva (mais tarde), empresários, trabalhadores da cultura e palpiteiros — pois você sabe: de futebol e cinema, todo mundo sabe um pouco, todo mundo dá pitaco. Porém, mais importante do que todas essas coisas, o cinema dos Lumière inventou um jeito de olhar. A invenção é o ato de criar algo. Nem sou eu quem diz, é o dicionário Aurélio. Além do mais, criar o que “não pertence ao mundo real”. Os irmãos Lumière se tornaram famosos pelo invento da máquina que resultou na invenção do cinema e nos primeiros filmes “documentais”. Mas que história é essa de aspas? Documentários, em linhas gerais, seriam os registros de um lugar, história, espaço ou pessoas no tempo, utilizando uma câmera para a captação dessas imagens — sim, foi o Aurélio quem disse. Acontece que esses registros, por mais que tivessem captado a realidade, na verdade captaram a invenção da realidade. Se as retinas de uma pessoa funcionam perfeitamente, não há um mundo em preto e branco – só para ficar em um exemplo. A realidade é substancialmente colorida. Diante das fotografias do século XIX e das primeiras imagens cinematográficas, aquilo do qual o espectador assiste é uma representação da realidade, cujas pessoas, objetos, luz, sombra e movimentos são exibidos em uma escala de cinza que não sei se chegam a 50 tons — se fossem coloridas talvez fossem “mais reais”, mas, ainda sim, não seria a realidade, independente da alta definição ou do 4K que temos hoje. Esta realidade inventada talvez seja o primeiro aspecto com o qual espectadores de Lumière se depararam logo nas primeiras exibições públicas. As histórias dessas primeiras mostras são recheadas de lendas. A mais conhecida talvez você já conheça. É aquela em que as pessoas se espantam com o filme A chegada de um trem na estação, como se a locomotiva, aproximando-se do primeiro plano, viesse ao encontro do público. Apavoradas pela suspeita de que seriam esmagadas, as pessoas fogem do cinema. Mas não há relatos com fontes materiais em que tal anedota tenha de fato ocorrido — nem só o rock vive de lendas ou de realidades inventadas: o cinema também vive e, principalmente, a vida pacata e banal de todos nós. Porque também dividimos parede com uma vizinha, dona de algum cachorro com nome de comida – tipo Chokito.
Parte dois
Existe um documentário sobre o Manoel de Barros que se chama Só dez por cento é mentira. O que nem dez por cento das pessoas que viram o filme sabe (e me desculpa a soberba, até porque eu também não sabia da primeira vez que vi) é que um dos entrevistados é um ator, que faz o papel de um marceneiro/eletricista (ou faz-tudo) e que constrói objetos a partir dos poemas de Manoel. Objetos sem utilidade, ou seja, uma das partes do design, a da função, é destruída. Nada menos utilitário que poesia, aliás. O ator seria, portanto, os dez por cento de mentira contidos no filme, já que os outros noventa por cento, como escreveria o poeta, seriam invenção. A graça está em acreditar, mas mesmo que você saiba que aquele ser é um ator em cena, a graça permanece — acho legal manter o sentido de “graça” na versão de “interessante” e na versão religiosa: “de benção”, “de agraciada”, “de vestida pela graça”. Caí no conto do vigário na primeira vez em que assisti ao filme. Depois me disseram que era um ator. Foi a partir daí que passei a olhar os seus trejeitos e pensar como aquele personagem era tão tomado de verdade, capaz de ser tão “poético” quanto os poemas de Manoel que surgiam escritos em branco sobre a tela. Porque a poesia (e por extensão a arte) é cheia de verdade, justamente porque não a busca como as demais formas de pensamento: ciência, filosofia, religião etc. São revelações irreveláveis ou que se revelam por não se revelarem. Lembro também do filme Jogos de Cena, do Eduardo Coutinho. O diretor é conhecido por documentários famosos e incrivelmente bons: Cabra Marcado Para Morrer, Edifício Master (que você pode ver aqui), Últimas Conversas e mais um punhado. Em Jogos de Cena, ele convida mulheres com a intenção de que relatem episódios de suas vidas, e depois convida atrizes para interpretar essas histórias. O interessante é ver a mesclagem dos depoimentos “verdadeiros” junto das interpretações. Às vezes uma atriz famosa começa falando (Fernanda Torres, por exemplo) e, no meio do relato, entra uma pessoa não famosa e continua a história a partir dali. Naturalmente você compreende que a pessoa não famosa é a que realmente viveu aquele relato. Mas, o jogo continua e as peças não são tão pretas ou brancas, imitam menos um xadrez e mais um quebra-cabeças, são tons de cinza que parecem chegar a 50, inclusive. No fim desse relato da pessoa não famosa, completamente imbuída de verdade em todos os gestos e formas de falar e até então todo feito em primeira pessoa, ela diz: “e foi assim que ela me contou”. A partir dali ficamos vesgos diante do que seriam as verdades e do que seriam as mentiras. Por fim, nos emocionamos com as histórias tanto interpretadas por atrizes como pelas próprias mulheres que as viveram — sem que saibamos ao certo de onde o milagre vem.
Parte três ou final
No ano de 2013 depois de Cristo, um rapaz chamado Leandro lia muito Alejandro Jodorowsky e outros “magos”. A sua vida prática era igual a de uma parcela considerável da população brasileira: trabalhava na parte da manhã e estudava à noite. Uma vida banal como a de uma formiga ou como a de uma pessoa que divide parede com o cachorro Chokito. Por conta das leituras mágicas em excesso — moléstia que também afetou o fidalgo Dom Quixote, mesmo que por vias não mágicas — começou a anotar parte de seu cotidiano em um caderninho que ele mesmo costurou. Era o seu livro de magia: um grimório. O que Leandro tentava com aquele livro mágico era transformar o seu cotidiano em milagre. Uma parte considerável falava de como as alegrias mínimas do dia poderiam fazê-lo feliz: ter o dinheiro trocado do ônibus ou a escrita de um poema para a planta de seu chá preferido. A capa continha um sigilo: desejo transformado em palavras e depois transformadas em símbolos. Na saudosa Papelaria Brasileira, da avenida Afonso Pena, ele ia catando papéis de texturas e cores variadas para compôr o grimório e registrar com afinco os milagres. Sem que se desse conta, a vida banal que levava se tornava única. Não se sabe, e talvez nunca saberemos, se aquela atividade seria responsável pelo modo milagroso em que vê o cotidiano nos dias atuais, principalmente pelo motivo de que em 2025 não mais se utiliza do grimório. A sua forma atual de olhar para objetos, lugares e gestos com a curiosidade de arqueólogo seria, portanto, resultado da pesquisa mágica daquele ano de 2013. Pode ser que sim: tipo algo que tenha se entranhado a ponto dele enxergar o milagre sem precisar de uma “bíblia”. Tende a acreditar, porém, que o grimório foi na verdade resultado desse olhar. O grimório é posterior à sua visão de mundo. Já via os milagres e sentia que precisava anotá-los, e não que por anotá-los seria capaz de vê-los — é o que Leandro pensa, apenas pensa, sentado sobre um dos bancos da Praça Gomes Freire.
*Obrigado por ler esta carta. Ela tem o apoio da sua leitura — nada mais.
**O conto lido de hoje se chama “Assalariado” e está no livro “Quando o dinossauro cair do céu os meteoros serão extintos”.